As pessoas mudam. Isto é um fato. Sei disso porque eu mudei. Drasticamente, a propósito. Eu costumava estar entre os populares e eu amava isso. E, desta posição de superioridade, eu costumava julgar as pessoas; mas pelo que elas eram e não por aquilo que elas tinham feito. Eu costumava acreditar que dinheiro era tudo o que importava. Dinheiro sempre significou poder, e era isso o que eu mais valorizava. Eu costumava achar que meu sobrenome era tudo que eu precisava para que as pessoas me respeitassem. Para que me temessem, na verdade. Eu sei, bastante estúpido, não? E o que deixava tudo ainda pior era que aqueles a quem eu chamava de amigos também acreditavam nas mesmas coisas. Costumávamos repetir que nós, filhos da elite, devíamos ficar sempre juntos.
Ao relembrar esses tempos eu ainda me surpreendo. Eu costumava ter tanta certeza do que eu queria, mas agora... Eu tento lembrar quando que tudo mudou. Eu acredito que tenha sido após um incidente ocorrido há alguns anos...
Eu e meus amigos ainda estávamos no colégio agindo como se não houvesse regras. Pelo menos regras que se aplicassem a nós. O dinheiro que sabíamos que nossos pais doavam à escola nos colocava numa posição segura, onde nenhuma conseqüência nos atingia.
Mas então ocorreu o tiroteio. Um tiroteio em nossa escola, em nosso reduto de poder, no único lugar que nos sentíamos protegidos da selvageria que tomava conta das ruas naqueles dias. Mas naquela tarde, a selvageria invadiu a zona de paz.
Todos fugiram. A maior parte de meus amigos se uniu aos invasores; estavam sempre dispostos a se unir aos que tinham o poder. Os restantes fugiram de medo. E nem ao menos um lembrou de mim. Nenhum deles lembrou da amiga que havia quebrado a perna algumas horas antes.
Eu ainda precisava de ajuda para caminhar e meus amigos sabiam disso. Meu namorado sabia disso, pelo amor de Deus! E eles não vieram me buscar. Eles me abandonaram machucada e com medo deitada numa cama. Se não fosse pela enfermeira do colégio e alguns outros alunos, eu provavelmente teria morrido e eles nunca teriam notado. Alguns dos alunos que me ajudaram nem ao menos gostavam de mim. Na verdade, não duvido que me desprezavam, já que eu era parte do grupo que os usava como alvos de "brincadeiras" nem um pouco saudáveis pelos corredores da escola. E tudo isso só por diversão. E mesmo assim eram eles que estavam estendendo a mão para mim.
É curioso que teve de acontecer isto para me abrir os olhos, para me fazer ver que o que importa não é o seu nome, ou sua família, ou seu sangue. Principalmente não o sangue. Naquele dia ficou claro para todos que quisessem ver, que todos sangrávamos igual, vermelho. Ali eu compreendi que o sangue azul que tanto prezávamos é tão real quanto os pretensos direitos que afirmávamos ter.
Um dos meus professores sempre dizia que não importa quem você é, mas as escolhas que você faz. Eu costumava rir disso, mas hoje vejo que é verdade.
Hoje, anos depois, eu vejo isto ainda mais claramente. Durante este tempo, pensei sobre minha vida e minhas escolhas. Vi os erros que cometi e me arrependi sinceramente da grande maioria deles.
Infelizmente minha família não vê as coisas da mesma forma que eu vejo agora. Eles estão todos no andar de baixo me esperando. Esperando pelo meu "grande momento" como minha mãe diz. Ela sempre sonhou com o dia em que eu me casaria. Um casamento dentro dos padrões imaginados, com toda a pompa e circunstância que nossa família tem direito. E meu pai! Ele está radiante dizendo para todos que sua pequena está casando com um rapaz de uma família distinta. Está sentado com o pai dele, os dois com caros charutos entre os dedos celebrando a tão esperada união das famílias.
Mas quem eu estou querendo enganar? Eu sei que nunca serei a noiva perfeita. Por mais que eu tente, não consigo ficar feliz. E este é o requisito principal para uma noiva não é? Mais importante ainda que o vestido branco, o véu e a grinalda, não? Mas não consigo... Estou indo para meu casamento como quem vai para o supermercado... Como se este fosse apenas mais um dia, sem nada de especial.
Você poderia estar me perguntando então porque eu estou fazendo isto. Por que estou seguindo para um casamento com um homem a quem nem sei se amo. Por que estou participando de uma celebração que é apenas para estreitar laços entre duas famílias da alta sociedade, para realizar o sonho de dois grandes patriarcas.
Sim, porque todos aguardavam longamente por este momento. Todos de nossas famílias estão felizes com nosso casamento. Um casamento antecipado desde que nascemos. Nós namoramos porque foi isso que sempre esperaram de nós. Noivamos pelo mesmo motivo. O casamento é o próximo passo.
E é por isso que propositalmente vou de encontro aos meus desejos, aos sonhos de amor verdadeiro. Faço isso por que sei que, caso contrário, eu vou quebrar o coração da minha família. E isso é algo que eu não posso fazer. Tudo em mim pode mudar, exceto o amor que tenho por minha família. Meus pais são minha estrutura, minha base, minha fortaleza.
Eles podem ter errado muitas vezes, mas se o fizeram, foi por amor, não tenho dúvida. Sempre pude ver nos olhos deles que sempre fizeram o que acreditavam ser melhor para mim, simplesmente porque me amam mais que tudo.
Não acham que isso é suficiente para que não consiga fazer nada que os magoe?
Mas sabe o que mais me impulsiona a seguir em frente? É saber que se eles soubessem a verdade sobre o que sinto, cancelariam o casamento. Parece contraditório, mas se isso acontecesse, não mudaria a dor que aperta meu coração, apenas tornaria nós todos infelizes.
Talvez o destino de um casamento com amor não me pertença. Posso viver com isso.
É que, no fundo, eu acredito que não será algo tão ruim. Meu casamento, eu digo. Meu noivo é um bom homem. Ele mudou muito também. Passou por muito sofrimento e isso nos uniu. Ele é meu amigo. Sempre fomos, na verdade. Mas agora é diferente. Estamos muito mais próximos, ele se tornou meu melhor amigo. Eu sei que ele não me ama e, como já disse, eu também não tenho certeza se o amo. Não um amor de marido e mulher pelo menos. Mas nós nos importamos um com o outro. É por isso que eu e ele estamos fazendo isto.
Enquanto eu termino minha maquiagem, no entanto, não consigo deixar de me perguntar quem é a garota que me encara no espelho. Não pode ser eu. O rosto dela está cheio de alegria, o verdadeiro rosto de uma noiva, enquanto eu choro por dentro, cheia de dúvidas e preocupações. Como meu próprio reflexo pode ser o de alguém que eu não conheço? Ou talvez eu conheça...
A garota do reflexo sou eu. Eu sem todo o questionamento sobre o valor do nome, sobre a necessidade do poder, sobre o verdadeiro valor da amizade. Por algum motivo, eu continuo a mesma por fora. Meu noivo é o único que consegue enxergar meu verdadeiro rosto. Nem mesmo minha família notou as diferenças que ocorreram dentro de mim. E como poderiam se eu ainda ajo como agia antes?
Quando que o meu reflexo vai mostrar quem eu sou por dentro? Será que um dia conseguirei exteriorizar minhas dúvidas e inquietações? Será que essas mudanças um dia serão concretas? Será que um dia terei coragem para tanto? Todas essas dúvidas me acompanharam ao altar, onde, sob olhares emocionados, eu mudaria meu sobrenome. O momento tão aguardado por todos. Todos, exceto eu.
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